Cientistas planetários que estudam Marte têm um segredo levemente constrangedor: eles não sabem muito bem a idade da maior parte da superfície do planeta.
Eles têm estimativas razoáveis, em sua maior parte baseadas na contagem de crateras que pontilham a crosta marciana – mais crateras significam mais idade. Mas a única maneira de determinar a idade com algo que se aproxime da realidade é analisar amostras de rocha de perto, e nenhuma das missões automáticas já enviadas a Marte levou o equipamento necessário para isso.
Sem idade precisa toda a história do planeta fica um pouco confusa, tornando mais difícil responder perguntas importantes sobre quando, e se, Marte abrigou formas de vida.
Felizmente, existem rochas marcianas aqui na Terra. Asteroides ou cometas podem atingir Marte com força suficiente para lançar fragmentos de sua crosta em viagens interplanetárias até nosso mundo. Cerca de 120 espécimes dos mais de 60 mil meteoritos em coleções por todo o mundo contêm misturas de minerais e bolhas microscópicas de ar que estão de acordo com o que sabemos sobre a superfície e a atmosfera marcianas.
Pesquisadores conseguem datar essas raras amostras ao medir certos isótopos radioativos de seu interior, porque eles decaem em outros elementos a taxas conhecidas. Para a maior parte das rochas ígneas, que começam sua vida na forma de material derretido, o cálculo da relação de um isótopo de vida longa, como o urânio 238, até seu produto decaído, o chumbo 206, produz uma estimativa muito boa sobre a idade da rocha – há quanto tempo seus isótopos ficaram presos em minerais que se cristalizaram a partir de uma massa derretida.
O problema é que medidores isotópicos diferentes sugerem datas diferentes para a variedade mais comum de meteoritos marcianos, blocos de rochas ígneas chamadas xergotitas (shergottites). Pulverize uma delas inteira e a proporção de isótopos de chumbo vai sugerir que a rocha tem aproximadamente 4 bilhões de anos.
Se, em vez disso, você observar vários isótopos isolados em grãos minerais microscópicos dentro de uma desses blocos acabará concluindo que a rocha é relativamente jovem – com poucas centenas de milhões de anos.
Esse problema confunde cientistas há anos, deixando-os divididos em relação ao tempo e duração da atividade vulcânica de Marte, e também em relação a quando ocorreu a consolidação do núcleo e manto marcianos. Agora, no entanto, o problema parece resolvido: em um relatório publicado na edição da Nature de 25 de julho, uma equipe de cientistas liderada por Desmond Moser, da University of Western Ontario, apresentou novas evidências de que xergotitas são jovens.
Eles baseiam suas conclusões em um fragmento marciano de meio quilograma conhecido apenas como Northwest Africa 5298 (NWA 5298). (Scientific American é parte do grupo editoral da Nature).
“Muitas equipes simplesmente vão direto para a datação por isótopos”, observa Kim Tait, co-autora do estudo e mineralogista do Real Museu de Ontario (ROM) em Toronto, que forneceu a amostra do NWA 5298. “Para nós, a datação ficou por último. Primeiro observamos os minerais com cuidado, escaneando-os grão a grão para que realmente conseguíssemos entender tudo no devido contexto... Toda rocha tem uma história para contar. Nosso trabalho é interpretar pistas para descobrir onde está essa história”.
“Esses minúsculos meteoritos estão cheios de histórias sobre a evolução de um planeta inteiro, histórias que atualmente não podemos extrair de sondas”, detalha explica Moser. “O que fizemos foi separar os ‘números das páginas’ das histórias preservadas nesses raros fragmentos espaciais”.
De acordo com Tony Irving, geoquímico da University of Washington e o primeiro cientista a identificar a origem marciana do NWA 5298, um nômade do deserto descobriu o meteorito em 2008, nos arredores da vila marroquina de Bir Gandouz.
Um intermediário muçulmano comprou a rocha do nômade e acabou por vendê-la por uma quantia não revelada a David Gregory, físico canadense que mais tarde doou-a ao ROM.
Analisando uma pequena amostra do meteorito Irving identificou-a como uma xergotita, com base em sua característica composição química e também em sua rede de veios vítreos e bolhas “metamorfoseadas por choque” formados pela pressão de um impacto que a lançou no espaço. Ele também notou a presença de grãos de badeleíta, um mineral rico em zircônio, frequentemente usado na datação urânio-chumbo.
Esses grãos de badeleíta se mostraram fundamentais para as investigações posteriores. Moser descobriu que eles também tinham umas poucas centenas de milhões de anos. O valor estava de acordo com estudos anteriores, mas proponentes da ideia de que xergotitas tem bilhões de anos há muito argumentam que os jovens grãos de badeleíta foram gerados pelo calor e estresse de um impacto, e, assim não representam a verdadeira idade da rocha.
Usando um sofisticado microscópio eletrônico Moser e seus colegas mapearam os grãos de badelíta pela primeira vez usando uma fina seção transversal do NWA 5298, e então estudaram cada um deles de perto em busca de pistas sobre o passado.
Muitos dos grãos tinham bandas concêntricas de materiais indicando um crescimento gradual, sugerindo que os grãos haviam se formado em um magma que se resfriou lentamente. As posteriores datações isotópicas radiogênicas de urânio-chumbo mostraram idade de aproximadamente 187 milhões de anos.
Um exame ainda mais detalhado revelou que a estrutura cristalina original dos grãos fora afetada pela passagem de uma súbita e poderosa onda de choque. De fato, os únicos minerais cristalinos restante eram aneis de zircônio rico em sílica que haviam fluído e se congelado instantaneamente ao redor dos grãos de badeleíta – sinal de derretimento por choque seguido de resfriamento no gélido vácuo do espaço.
Isótopos de urânio e chumbo extraído de grãos que tinham esses aneis sugeriram uma idade estimada de menos de 22 milhões de anos. Após correções devido a fontes de contaminação originárias da Terra, como a queima de gasolina aditivada com chumbo, medidas indicaram uma data de mais de 4 bilhões de anos.
Essa matriz mineral também mostrou uma estranha preponderância de chumbo inerte de origem marciana, sinal de que a região nas profundezas do planeta onde a rocha se formou havia deixado de interagir com seus arredores havia muito tempo.
“Isso quer dizer que tanto as estimativas jovens quanto as velhas estão ‘corretas’, mas elas significam coisas diferentes”, justifica Irving, que não se envolveu com o trabalho.
A badeleíta jovem formou-se há quase 200 milhões de anos, quando a rocha fonte das xergotitas se cristalizou na superfície marciana, ou próximo dela. De acordo com ele o chumbo, muito mais velho, é um artefato de uma época há cerca de 4 bilhões de anos, quando a maior parte do profundo interior marciano já havia se resfriado e cessado sua convecção.
Agora, em relação ao porquê de esse chumbo estar lá, Moser e seus colegas sugerem que essa presença pode estar relacionada a um ou mais impactos gigantes que ocorreram antes de 4 bilhões de anos, com uma força tão destrutiva que alteraram permanentemente a química do interior marciano.
Evidências desses impactos massivos podem ser vistas nas diferenças hemisféricas na elevação e espessura da crosta marciana.
Assim, a partir de um único meteorito pequeno, uma narrativa épica se insinua: Marte já estava morrendo há mais de 4 bilhões de anos, perdendo rapidamente seu calor interior para o espaço, quando um resquício de asteróide deixado pela formação do Sistema Solar pode ter se chocado contra ele, derretendo parte de sua superfície e varrendo uma porção significativa da atmosfera para o espaço.
A grande cicatriz do impacto gradualmente se congelou e Marte entrou em senescência. Muito mais tarde, há cerca de 187 milhões de anos, enquanto dinossauros caminhavam pela Terra, uma lenta pluma de magma partiu a superfície marciana, derramando uma lava jovem marcada com a assinatura do antigo impacto; essa lava se cristalizou lentamente e formou as badeleítas.
No mínimo outros 165 milhões de anos se passaram sem incidente, até que um novo impactou Marte. O choque lançou fragmentos parcialmente derretidos da lava cristalizada ao espaço através atmosfera, marcando os grãos de badeleíta com aneis de zircônio derretido. Um dos fragmentos escapou e viajou no espaço por milhões de anos até pousar na Terra em meio a uma bola de fogo no que hoje é o oeste do deserto do Saara, ao sul do Marrocos. Ele ficou lá, apenas uma rocha marrom na areia até que, por sorte, uma pessoa o coletou em 2008.
Nada disso revisa mais profundamente nossa compreensão de Marte, mas finalmente determina datas melhores de alguns eventos fundamentais para a história do planeta, além de levantar novas perguntas sobre seu interior profundo. O aspecto mais notável desse estudo de datação é que suas ideias sugerem maneiras de abordar outros mistérios do Sistema Solar.
“O que fizemos neste estudo pode ser aplicado a qualquer rocha, em qualquer lugar”, argumenta Tait. “De meteoritos primitivos e asteroides ao interior de planetas rochosos, podemos usar essas técnicas analíticas para começar a montagem de uma história mais precisa e detalhada do Sistema Solar”.