10% de um cigarro são substâncias que dão sabor, melhoram o trago e diminuem a irritação provocada pela fumaça. Entenda a briga para eliminar todos esses aditivos
Em 1972, um comunicado interno da Philip Morris dizia: “O cigarro não deve ser concebido como um produto, mas como um pacote. O produto é a nicotina”. Isso explica por que, principalmente após a década de 1970, os fabricantes passaram a incluir no “pacote” substâncias que melhoram o consumo da nicotina amenizando efeitos desagradáveis do hábito de fumar. Os chamados aditivos, cerca de 10% da massa de um cigarro, diminuem a irritação da fumaça, facilitam tragar mais fundo e mantêm um padrão de sabor no tabaco. Essas substâncias estão agora no centro de uma disputa judicial com potencial para mudar os rumos do tabagismo no Brasil, hábito que mata 200 mil por ano.
O país transformou-se no primeiro do mundo a proibir a fabricação e venda de cigarros com quaisquer aditivos que modifiquem seu sabor. Um decreto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de março de 2012, colocou prazo de um ano e meio para que a fabricação deles parasse. O prazo venceu, mas nada mudou. Isso porque o Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu uma liminar que cancelou a medida temporariamente — até o fechamento desta edição não havia decisão final. Antes, a própria Anvisa já havia atendido apelo da indústria e liberado parte dos aditivos por um ano.
A ideia de barrar o sabor no cigarro não é brasileira, faz parte das recomendações da Convenção Quadro, um tratado internacional proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em vigor desde 2005. A intenção é dificultar a iniciação no tabagismo. Pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (Inca) aponta que 45% dos fumantes de 13 a 15 anos usam versões com sabor, como as mentoladas ou de cravo. Mas a proibição vai além dessas versões, que são 3% do mercado. Os produtos a serem banidos, de acordo com a indústria, estão em 99% dos cigarros.
O PAPEL DOS ADITIVOS
Na lista de 600 aditivos da Anvisa estão substâncias como mentol, extratos de cacau, de café e figo. “Elas tornam os cigarros mais atraentes e menos difíceis de serem experimentados, induzindo à iniciação”, afirma Vera Luiza da Costa e Silva, pesquisadora da Fiocruz.
Não se trata apenas de mudar o gosto. O mentol, por exemplo, é um dos ingredientes com “propriedades anestésicas, que permitem uma inalação mais profunda da fumaça irritante” e tornam possível “baforadas mais fundas, resultando em mais nicotina absorvida”, diz o relatório O Potencial Viciante e de Atratividade dos Aditivos de Cigarro, feito por um comitê científico para embasar decisões da União Europeia — que está revendo sua lei. O mentol, mostra o documento de 2010, é adicionado não só aos cigarros vendidos como “mentolados”, mas também a outros que não fazem essa distinção.
No relatório também são citados compostos que dilatam as vias aéreas, como derivados do cacau e da cafeína, com o potencial de aumentar a absorção de nicotina. A adição de açúcar ao tabaco, outra prática comum, faz mais acetaldeídos serem liberados na queima. Em testes com ratos, a substância incrementa o poder viciante da nicotina. Outro aditivo citado, a amônia, aumenta a quantidade de nicotina livre, que pode ser absorvida com mais rapidez e gerar mais dependência. Na norma da Anvisa, o açúcar continuaria permitido na produção, mas exclusivamente para recompor a quantidade perdida no processo de secagem das folhas de tabaco; já a amônia seria banida.
A revisão de estudos da União Europeia não mostra resultados conclusivos sobre os danos dos aditivos, e pede mais pesquisas com humanos, “o que é difícil por questões éticas e de custo. Ainda não foram identificados aditivos que, por si só, são viciantes”, esclarece o documento, que logo depois ressalva: “Os aditivos que facilitam inalação mais profunda podem aumentar o poder viciante da nicotina indiretamente”.
DISPUTA JUDICIAL
Há pelo menos 30 anos a indústria sabe do papel atrativo dos aditivos. “Realçadores do tabaco, chocolate, baunilha e licor são alguns dos mais excitantes e promissores aromatizantes desenvolvidos nos últimos anos. Eles parecem ter apelo significativo para os fumantes de 18 a 24 anos e esse é obviamente o grupo que procuramos desesperadamente”, diz trecho de comunicado interno da fabricante de cigarros R.J. Reynolds de 1984, revelado por ordem judicial.
O que o setor do fumo argumenta agora é que banir essas substâncias acarretaria em aumento no mercado ilegal de tabaco. “As organizações criminosas que o comandam não respeitarão as novas restrições e preservarão a capacidade de comercializar os produtos por preços artificialmente baixos, mais acessíveis aos menores de idade”, disse por nota a Associação Brasileira de Indústria do Fumo (Abifumo).
Esse não é o único ponto levantado pela indústria, que alega “perigo imediato do fechamento de fábricas e da demissão em massa de trabalhadores”, 2,5 milhões de pessoas. Esse impacto não está claro, já que a regra não afeta cigarros para exportação — 85% do tabaco produzido no Brasil é exportado, mas a Abifumo diz que o porcentual de cigarros é insignificante. O Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco entrou com ação de inconstitucionalidade contra a norma da Anvisa, escrevendo que “[medidas como esta] exigem amplo debate no Congresso e promulgação de lei”. Paula Johns, diretora da Aliança de Controle ao Tabagismo (ACT), rebate essa visão. “O veto tem fundamentação técnica, não pode vir do Congresso, à mercê de politicagem.”
A proibição é apoiada por 75% dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha encomendada pela ACT em 2011. “Essa medida pode ter implicações globais porque pode incentivar outros países a fazerem o mesmo”, diz Paula.
Michael Erickssen, um dos mais respeitados especialistas em tabagismo do mundo, diz que o Brasil viraria exemplo global. Isso porque, ao contrário do banimento de aditivos feito em 2009 nos EUA e no Canadá, a proibição brasileira inclui o mentol, um dos mais populares. Nos EUA, o tabagismo diminuiu entre os jovens. “Os índices são os mais baixos em décadas, mas a queda também é atribuída ao preço, ao marketing contrário e a outros fatores”, diz Erickssen, autor principal do Atlas do Tabaco.
Mesmo sem definição, versões sem aditivos já são vendidas, caso do recém-lançado Lucky Strike Original Tobacco. Se o banimento vencer, será mais um acréscimo à legislação antifumo (veja infográfico abaixo) do país, que é ao mesmo tempo referência de controle do tabagismo e o 2º maior produtor de tabaco do mundo.
Ao proibir os aditivos de sabor aos cigarros, a lei americana não impôs o mesmo a charutos e cigarrilhas. Isso acabou por fomentar um mercado de minicharutos, com embalagens coloridas, sabores como morango e chocolate, e preços atraentes.
Enquanto um pacote com 20 cigarros custa US$ 6, um de 20 "charutinhos" com sabor sai por US$ 2. Vendidos indiscriminadamente perto de balas e doces, esses produtos têm registrado aumento na preferência e no consumo nos Estados Unidos. “Apesar do baixo consumo desses cigarros, cigarrilhas e o fumo para mascar com sabor estão crescendo”, diz o especialista Michael Erickssen. De acordo com a Anvisa, isso não ocorreria no Brasil porque a medida proposta proíbe o uso de aditivos de sabor em qualquer produto derivado do tabaco.
Como o Brasil tem fechado o cerco contra o tabagismo
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